06 abril 2006

Monte: ida ao mato

O amanhecer em Candoz



Quatro da manhã. O luar espelhava pelos montes e vales iluminando a paisagem como quando está para alvorecer. O tempo estava bom, limpo, sem nuvens – as estrelas cintilavam por tudo quanto era céu – a temperatura fria mas suportável.

Era dia de ir buscar mato ao monte.

- Vá, rapazes, toca a levantar e preparar os bois. Já são horas!

Um pouco ensonados, com os olhos ainda semi-cerrados lá se levantavam todos para dar inicio aos preparativos necessários. Um dos rapazes mais velhos que se tinha levantado um pouco mais cedo para dar de comer aos bois – estes deviam estar bem fartos – e que aproveitando a quentura que se fazia sentir dentro da corte acabara por adormecer, enroscado a um canto da mesma, aparecia já com os bois pela soga. E com a mestria de quem já tinha feito essa operação dezenas de vezes, o chefe da casa, ajudado pelos filhos, pegava nas molhelhas que colocava por cima da cabeça dos bois e jungia-os apertando bem as fitas ao jugo (raramente a canga) para depois os "por" ao carro.

Bois?



A dona da casa já tinha preparada uma pequena cesta de verga onde embrulhado num pano de linho tinha colocado umas cebolas descascadas, um pouco de sal para as ditas, um bom naco de broa, azeitonas, um pedaço de toucinho uma caneca de porcelana branca e … pouco mais. À parte seguia naturalmente o garrafão de vinho verde tinto. Era o que se poderia preparar para o almoço (hoje pequeno almoço), jantar (hoje almoço) e merenda que iriam ter quando chegassem ao monte (à serra por vezes, bem lá no alto de Montedeiras, onde só há mato e nenhuma ou quase nenhuma árvore) daí a duas ou três horas.

Tudo preparado. Os estadulhos do carro nos seus respectivos sítios; a corda do travão também a postos; um bom molhe de erva para os bois comerem durante o dia; as forquilhas, ganchos, sacholas (enxadas), cordas, tudo em cima do carro. Iniciava-se então o percurso para o monte através de caminhos apertados, escabrosos, irregulares, pedregosos, feitos pelos lavradores do antanho, há já provavelmente centenas de anos atrás, onde todo o cuidado era pouco para que não acontecesse algum percalço.


Serrões manuais? As moto-serras apareceram!




À frente a chamar os bois seguia um dos rapazes mais velhos com a sua vara de marmeleiro aguilhoada ao ombro. A trás, a pé (nada de pesar no carro para não cansar os bois já que era preciso poupá-los para o esforço que lá para o fim do dia teriam que fazer. Eles eram a única força de tracção que tinham para além de serem os produtores de estrume para fertilizar a terra e que aquando da sua venda, na Feira do Marco dos 3 ou dos 15, proporcionariam algum ganho) seguia o pai e os outros rapazes – alguns ainda bem novos que, sabe Deus, bem lhes custava andar por aqueles caminhos, descalços e meios a dormir –.

Comandados pelo andar ronceiro dos bois, chegam finalmente ao monte. Está a alvorecer. O sol ainda não nasceu. Está um ar fresco mas bom para roçar mato. Daqui a pouco o sol e o esforço fá-los-ão suar as “estopinhas”.

O carro é retirado dos bois e posto em posição para mais tarde ser fácil de carregar. Os bois embora mantendo-se aparelhados são levados (- Afasta pr’a trás!) para um sítio onde o sol não será tão intenso deixando-os com a vara de os “chamar” a prumo e encostada ao jugo entre as molhelhas. Aí permanecerão na sua mansidão apenas ruminando e sacudindo as moscas com o rabo.


Enxadas para cortar? E então as máquinas?



Enquanto um dos rapazes se encarrega do serviço de derramar os pinheiros, deixando-os mais esguios e limpos, para crescerem mais direitos, para os ramos assim cortados serem aproveitados para a lareira, os outros dão início ao corte do mato com as enxadas. È necessário cortar bastante para dar uma boa carrada já que não se vai ao monte muitas vezes. O corte é feito de uma forma ordenada. Aliás o mato não abunda muito e é preciso deixá-lo crescer. Era o tempo em que os montes estavam limpos, sem um ramo, pinha ou até caruma no chão. Tudo era apanhado e levado para baixo, para o estrume, para a lareira, para o alambique, para estacas, etc. Arvores caídas não existiam pois sempre que tal acontecia eram de imediato serradas (com serrões manuais – quando apareceriam as moto-serras?) e transportadas para junto da casa.


Derramar para no fim ajudar à amarração




Os incêndios eram por isso raríssimos, ao contrário de hoje em que já não são necessários caminhos para o monte em que a lenha não é precisa (há electricidade, gás, poucas lareiras, pouca gente disponível e interessada), em que há um desleixo que permite a acumulação de resíduos de lenha e mato, fáceis propagadores de incêndios, verdadeiros inimigos das árvores, florestas, ambiente e economia deste país.


As máquinas dão mais rendimento com menos esforço




Já há bastante mato cortado. Pausa para o almoço dos homens e dos bois. Após um pequeno descanso, de novo se começa a ouvir o som cavo e constante das enxadas a cortar o mato.

- Já chega! Já não sei se irá todo! Vamos merendar o que sobrou, beber um copo e começar a acartá-lo!

Exclama o pai.


Carregar o mato



Saciada essencialmente a sede, pois de comer pouco tinha restado, começa o trabalho de arrastar o mato pelo monte abaixo até perto do carro de bois onde será carregado.
Uns encarregam-se de fazer as paveias de mato, outro sobe para cima do carro para selectivamente ir arrumando e compondo a carga, os outros com as forquilhas vão, paveia a paveia, içando o mato para cima do carro.

A altura da carga já é bastante. Os últimos ramos cortados no derramamento dos pinheiros são colocados por cima de tudo para facilitar a amarração. As cordas são lançadas por cima da carga e bem puxadas e presas para uma maior segurança e estabilidade.

Pouco mato há para carregar



Os bois são “postos” ao carro. Quase que vão ter de andar um pouco de lado pois o mato, para se aproveitar todo quase que chega à cabeçalha.

Tudo pronto. Inicia-se a marcha pela encosta abaixo, pelos caminhos em que cada rocha saliente (ainda que bem escavada) obriga a um esforço redobrado pelo desnível que apresenta.

- Puxa pela corda! Força! Trava-me bem essas rodas! Não as deixas rodar!


Não é necessário fazer paveias. Só carregar.


E, com o “chamador” dos bois a tentar segurá-los para que descessem lentamente, o rapaz a puxar à corda que passava no eixo e fazia de travão e os outros de lado, a segurar com as enxadas a carga para esta se manter equilibrada, as rodas deslizavam, sem girar, pela saliência da rocha, evitando os solavancos.

Felizmente o carro não tombou (não raro acontecia), o que, para além do perigo que isso representava para os bois, do trabalho de ter que descarregar e voltar a carregar o mato era uma vergonha por que se passava sempre que tal acontecia.

Bem pisado e composto




Com todos os cuidados, com todos os vagares do mundo (o tempo não contava – era mais que muito) finalmente chegavam a casa cansados mas ufanos da carga que traziam, da forma cuidada e bem composta da mesma e de nada de mal ter acontecido.

- Carrada de mato Tio Zé! Bem compostinho!

O sol começava a entrar no seu ocaso. A noite avizinhava-se. A ceia – bem merecida – estava quase pronta.

Mais um dia de estafada labuta estava a chegar ao fim.

A ramagem no topo



Hoje! Só quase por desporto se vai ao monte ao mato.
Bois? Vacas? Touros? Não há! Apenas algumas ovelhas que pouco precisam e que vão produzindo algum estrume para a horta.
Só de tractor, com moto-serras, com máquinas a gasolina de roçar mato, com “estradões” largos, com pouco mato para cortar porque os incêndios devastam tudo.

Como os tempos mudaram – e em termos de qualidade de vida ainda bem – nestes últimos 30 a 40 anos!

Amarrar o mato para não cair


Texto de Augusto Pinto Soares (2006)
Créditos fotográficos: Augusto Pinto Soares