Texto de Luís Graça, originalmente publicado no Blogue-Fora-Nada > 13 Abril 2004 > Portugal sacro-profano - XIX: Boas e Santas Páscoas. Nós, por cá, todos bem!
1. É domingo de Páscoa na aldeia. Faz frio mas o sol está esplêndido. É um daqueles dias em que a gente se reconcilia com a vida. Nem que seja por uns breves instantes. Com a vida, mas não necessariamente com o mundo. Como o Eça e o seu príncipe Jacinto, em Tormes, aqui ao lado, à volta de um copo de vinho branco e de umas favas suadas.
A manhã, primaveril, traz-me os sons, as cores e os cheiros do campo. Um outro campo que não o da minha infância. Descobri, tarde, esta parte do Portugal sacroprofano que me dizem ser mais celta e visigótico do que mouro.
2. Um citadino, como eu, não sabe o que é isso de ouvir, logo pela manhã, os galos a cantar nos galinheiros. Ou ver as cerdeiras (cerejeiras) em flor. Ou observar os melros de bico amarelo pousados nas videiras que desabrocham.
Um citadino não tem o privilégio de ouvir falar dos gaviões nem das suas frágeis presas. Nem sabe por que autoestradas andam as toupeiras e os ouriços-caixeiros deste país. Nem por que razão falam alto e bom som as gentes de além-Douro. Nem o seu gosto desmedido pelo fogo que ribomba como o trovão.
3. Nos campos de erva, de diversas tonalidades de verde, são visíveis as partes que foram cortadas para as ovelhas, agora recolhidas nas cortes à medida que os gamões das videiras crescem a olhos vistos.
Na grande matança da Páscoa, o sacrificado é o cordeiro, o anho, o ex-libris da gastronomia da região. Já fumegam as chaminés enquanto ao longe ouve-se o estralejar dos foguetes. O compasso pascal anda por aí. Com a cruz abrindo os tortuosos caminhos e exorcizando os medos ancestrais.
In hoc signo vinces. Desde Constantino, o Imperador, que a cruz marca a vida dos camponeses da região, do nascer ao morrer. Com este sinal vencerás. Vai levar dois dias a percorrer a freguesia. A cruz, o Cristo pregado na cruz, o compasso, os homens da opa vermelha e o menino da sineta, de sobrepeliz branca como o anjo. Menos de mil almas e algumas escassas centenas de fogos a visitar:
- Aleluia, aleluia, Cristo ressuscitou! - diz o homem da opa vermelha, o mordomo da festa sacroprofana.
4. Em frente o vale e a montanha. O rio Douro ao fundo. Pacificado. Cem anos depois, o Eça não voltaria a escrever A cidade e as serras. Há trinta ou quarenta anos atrás, talvez. Havia ainda um mundo a desmoronar-se. E testemunhas vivas desse mundo. O mundo dos rendeiros e dos camponeses pobres que decidiram trocar o arado e as juntas de bois pela linha de montagem automóvel ou pelos chantiers da construção civil nos arredores de Paris.
Hoje há a barragem do Carrapatelo, as antenas das telecomunicações e os moínhos eólicos no alto das serras. E o Mercedes de matrícula K. O progresso cobra o seu preço. A globalização também. Estradas e estradões esventraram o cenário bucólico que escondia a miséria dos casebres dos cabaneiros, os mais pobres dos pobres.
A manhã, primaveril, traz-me os sons, as cores e os cheiros do campo. Um outro campo que não o da minha infância. Descobri, tarde, esta parte do Portugal sacroprofano que me dizem ser mais celta e visigótico do que mouro.
2. Um citadino, como eu, não sabe o que é isso de ouvir, logo pela manhã, os galos a cantar nos galinheiros. Ou ver as cerdeiras (cerejeiras) em flor. Ou observar os melros de bico amarelo pousados nas videiras que desabrocham.
Um citadino não tem o privilégio de ouvir falar dos gaviões nem das suas frágeis presas. Nem sabe por que autoestradas andam as toupeiras e os ouriços-caixeiros deste país. Nem por que razão falam alto e bom som as gentes de além-Douro. Nem o seu gosto desmedido pelo fogo que ribomba como o trovão.
3. Nos campos de erva, de diversas tonalidades de verde, são visíveis as partes que foram cortadas para as ovelhas, agora recolhidas nas cortes à medida que os gamões das videiras crescem a olhos vistos.
Na grande matança da Páscoa, o sacrificado é o cordeiro, o anho, o ex-libris da gastronomia da região. Já fumegam as chaminés enquanto ao longe ouve-se o estralejar dos foguetes. O compasso pascal anda por aí. Com a cruz abrindo os tortuosos caminhos e exorcizando os medos ancestrais.
In hoc signo vinces. Desde Constantino, o Imperador, que a cruz marca a vida dos camponeses da região, do nascer ao morrer. Com este sinal vencerás. Vai levar dois dias a percorrer a freguesia. A cruz, o Cristo pregado na cruz, o compasso, os homens da opa vermelha e o menino da sineta, de sobrepeliz branca como o anjo. Menos de mil almas e algumas escassas centenas de fogos a visitar:
- Aleluia, aleluia, Cristo ressuscitou! - diz o homem da opa vermelha, o mordomo da festa sacroprofana.
4. Em frente o vale e a montanha. O rio Douro ao fundo. Pacificado. Cem anos depois, o Eça não voltaria a escrever A cidade e as serras. Há trinta ou quarenta anos atrás, talvez. Havia ainda um mundo a desmoronar-se. E testemunhas vivas desse mundo. O mundo dos rendeiros e dos camponeses pobres que decidiram trocar o arado e as juntas de bois pela linha de montagem automóvel ou pelos chantiers da construção civil nos arredores de Paris.
Hoje há a barragem do Carrapatelo, as antenas das telecomunicações e os moínhos eólicos no alto das serras. E o Mercedes de matrícula K. O progresso cobra o seu preço. A globalização também. Estradas e estradões esventraram o cenário bucólico que escondia a miséria dos casebres dos cabaneiros, os mais pobres dos pobres.
O Zé do Telhado já há muito que morreu, desterrado em Angola, mas ainda continua meio vivo na memória das gentes do Douro Litoral. Os netos dos antigos senhores, os fidalgos, proprietários agrícolas absentistas da Foz do Douro, recuperam as casas dos caseiros e fazem delas a sua casa de campo. Com piscina e court de ténis. O povoamento continua disperso pelo verde e pelos socalcos. Os montes estão carecas depois das últimas décadas de incêndios. Já há muito que regressou o último soldado das colónias e se escreveu o último aerograma. E o Porto aqui tão perto. Cada vez mais perto com as autoestradas, as IP e as IC do país motorizado.
5. Um mundo quase perfeito, visto da janela do meu quarto. Domingo de Páscoa, de manhã. Faltam-lhe só, porventura, os camponeses, que morreram. E os que emigraram. E os que não voltaram. E os que morreram, mal nasceram. Que as famílias eram numerosas mas a mortalidade infantil altíssima. Passo os olhos pelas paredes da casa, de grosso granito. Já albergaram sete, oito ou mais gerações, que os seus registos só vão até 1820. Não é nada, se tu souberes que os australopitecos, teus antepassados, evoluíram há 5 milhões de anos, 200 mil gerações atrás.
Há quinhentos anos que se deitam foguetes nas vilas e aldeias do Portugal sacroprofano. Não sei nada da história do fogo de artifício. Sei apenas que veio da velha China com as naus quinhentistas. Para celebrar a ressurreição de Cristo. Ou mais prosaicamente para fazer a festa. Que é a vitória sobre o trabalho. O tripaliu(m) que mata a gente. E para marcar o tempo, o fluir do tempo, o solstício do inverno e do verão, a inexorável usura do tempo.
E todos os anos pela Páscoa, eu, descendente de austrapolitecos, assisto da minha varanda de granito à alegria infantil dos camponeses durienses que já morreram, face à orgia de fogo que assinala, em cada freguesia, o recolher do compasso pascal. Da minha janela vejo o mundo ou uma parte dele, mesmo ínfíma: Paredes de Viadores, Mesquinhata, Santa Leocádia, Porto Antigo, Paços de Gaiolo... Estes nomes, medievos, passaram a ser-me familiares. E as serras à volta do meu presépio: Montemuro, Aboboreira... Mas este ano, os de Paço é que lançaram o fogo mais vistoso:
- Dois mil contos de réis!, dizem as gentes da terra, ainda incapazes de raciocinar em termos de euros, de milhões de euros. Capricharam, os de Paços de Gaiolo, mas também é verdade que eles têm o dobro dos fogos da minha adoptiva freguesia de Paredes de Viadores.
7. Da janela do quarto da aldeia que eu também fiz minha, só não posso ver o mar. E faz-me falta o mar. E o pôr do sol no mar. Na exacta e nítida linha do horizonte. Ah!, quanto falta nos faz o mar, ó Sofia, deusa grega antiga. Mas não penso nele, no mar. Nem na mediterrânica luz da poesia da Sofia. Neste domingo de Páscoa, se me é legítimo ter um pensamento de admiração e agradecimento, ele vai direitinho para os meus australopitecos que nunca terão chegado a estas terras frias de Candoz e de Fandinhães, parte do concelho, extinto em 1836, a que chamavam Bem Viver. Sei também que nunca receberão as minhas mensagens, porque já estão extintos, mas eu mandei-lhes um SMS:
- Boas e Santas Páscoas. Nós por cá, todos bem!.
5. Um mundo quase perfeito, visto da janela do meu quarto. Domingo de Páscoa, de manhã. Faltam-lhe só, porventura, os camponeses, que morreram. E os que emigraram. E os que não voltaram. E os que morreram, mal nasceram. Que as famílias eram numerosas mas a mortalidade infantil altíssima. Passo os olhos pelas paredes da casa, de grosso granito. Já albergaram sete, oito ou mais gerações, que os seus registos só vão até 1820. Não é nada, se tu souberes que os australopitecos, teus antepassados, evoluíram há 5 milhões de anos, 200 mil gerações atrás.
6. No Século XXI, Cristo continua a ressuscitar todos os anos, pela Páscoa. No Entre-Douro e Minho da minha aldeia. E os cristãos reunem-se em casa uns dos outros para comer o agnus Dei com arroz de forno. E para celebrar o milagre da vida. A vitória da vida sobre a morte.
Há quinhentos anos que se deitam foguetes nas vilas e aldeias do Portugal sacroprofano. Não sei nada da história do fogo de artifício. Sei apenas que veio da velha China com as naus quinhentistas. Para celebrar a ressurreição de Cristo. Ou mais prosaicamente para fazer a festa. Que é a vitória sobre o trabalho. O tripaliu(m) que mata a gente. E para marcar o tempo, o fluir do tempo, o solstício do inverno e do verão, a inexorável usura do tempo.
E todos os anos pela Páscoa, eu, descendente de austrapolitecos, assisto da minha varanda de granito à alegria infantil dos camponeses durienses que já morreram, face à orgia de fogo que assinala, em cada freguesia, o recolher do compasso pascal. Da minha janela vejo o mundo ou uma parte dele, mesmo ínfíma: Paredes de Viadores, Mesquinhata, Santa Leocádia, Porto Antigo, Paços de Gaiolo... Estes nomes, medievos, passaram a ser-me familiares. E as serras à volta do meu presépio: Montemuro, Aboboreira... Mas este ano, os de Paço é que lançaram o fogo mais vistoso:
- Dois mil contos de réis!, dizem as gentes da terra, ainda incapazes de raciocinar em termos de euros, de milhões de euros. Capricharam, os de Paços de Gaiolo, mas também é verdade que eles têm o dobro dos fogos da minha adoptiva freguesia de Paredes de Viadores.
7. Da janela do quarto da aldeia que eu também fiz minha, só não posso ver o mar. E faz-me falta o mar. E o pôr do sol no mar. Na exacta e nítida linha do horizonte. Ah!, quanto falta nos faz o mar, ó Sofia, deusa grega antiga. Mas não penso nele, no mar. Nem na mediterrânica luz da poesia da Sofia. Neste domingo de Páscoa, se me é legítimo ter um pensamento de admiração e agradecimento, ele vai direitinho para os meus australopitecos que nunca terão chegado a estas terras frias de Candoz e de Fandinhães, parte do concelho, extinto em 1836, a que chamavam Bem Viver. Sei também que nunca receberão as minhas mensagens, porque já estão extintos, mas eu mandei-lhes um SMS:
- Boas e Santas Páscoas. Nós por cá, todos bem!.
Créditos fotográficos: © Luís Graça (2005)
1 comentário:
Muito interessante essas tradições, são um bocado diferentes das dos Açores.
Boa Páscoa.
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